Desapareceu sem anúncio
Num qualquer dia de Inverno que estivéssemos juntos, a cabine era sempre o nosso refugio. Fugíamos da chuva, do frio e dos pais, sempre que aprontávamos mais uma.
Naquele tempo, a cabine era daquelas todas fechadas, cuja porta abria em acordeão, para dentro, e não devia ter mais de um metro por um metro, no entanto e sem grande esforço, cabíamos lá os quatro (depois da técnica aprendida).
Eu e a sis sempre fomos magrinhas, as duas juntas não ocupávamos um espaço.
O louro também era um trinca-espinhas, mas era acima de tudo moldável. O rapaz parecia ser feito de borracha.
E depois havia o génio. O génio era baixo, gordo, coxo e usava óculos. Era, acima de tudo, um bom amigo, mas era hirto, ocupava o espaço dele sem que conseguíssemos demovê-lo.
A primeira vez que nos lembramos de ir para a cabine foi um fartote de rir. Não conseguimos caber os quatro, e as várias tentativas frustradas de o conseguirmos, acabavam sempre connosco agarrados à barriga a rir. Lembrámo-nos de ir para a cabine quando começou a chover, mas quando conseguimos, finalmente, entrar os quatro, percebemos que o objectivo tinha sido falhado. Nós estávamos completamente encharcados... Mas estávamos felizes. Enquanto esperávamos pelo fim da chuva, conversávamos animadamente, até que um de nós tem uma ideia luminosa* - ligar para os números que sabíamos de cor e brincar com quem atendesse.
A cabine foi a nossa casa na árvore durante muitos Invernos.
Foi a cabine que nos apresentou à nossa judiaria preferida. No início éramos uns totós, as chamadas que fazíamos eram básicas, do tipo "está na linha?" / "sim" / "então saia que o comboio vai passar". Os números eram os que sabíamos ou que marcávamos aleatoriamente,
Com o passar das semanas tornámo-nos mais ariscos e desafiadores. Descobrimos as listas telefónicas e passámos a ligar para números escolhidos de acordo com os nomes mais estranhos. As chamadas passaram a ser mais longas. Procurávamos que a pessoa ficasse interessada no que dizíamos e só depois é que saía a patetice. O final era sempre o mesmo: desligar muito abruptamente e rir desmesuradamente.
Embora só fizéssemos esta judiaria no Inverno, os momentos de alegria que nos proporcionou levou-nos a criar uma ligação especial com a cabine. Naquele tempo, nós sabíamos que no Verão íamos para a praia e no Inverno para a cabine.
Até que chegou um dia, era Verão, em que apareceu um camião enorme, de caixa aberta, que parou à beira da estrada. Lá de dentro saíram alguns cinco homens, todos vestidos de igual. Nas traseiras do camião, dentro da caixa aberta, conseguíamos ver um ferro gigantesco e o que parecia ser um ovo. Assim que vi percebi o que era, já conhecia da cidade. Lá já havia há uns anos e por isso a nossa era ainda mais especial... Já não existia mais nenhuma igual a ela. Ainda de olhos postos no que estava a acontecer do outro lado da estrada avisei os outros de que iam mudar a cabine. Íamos "ter daquelas todas abertas, em que as pessoas apanham chuva se precisarem de telefonar."
Fomos embora e só voltámos no dia seguinte, para conhecermos a nova cabine.
*em nossa defesa, alego que a culpa é do Bart Simpson, que na altura ligava para o bar do Moe a fazer o mesmo.